quarta-feira, 25 de março de 2009

O Sarcófago

Três amigos decidiram fazer uma viagem até ao Egipto. A egiptologia sempre os fascinou. Chegaram ao Cairo em Setembro de 2003, depois de uma viagem tão atribulada e longa, como qualquer crente, cumprindo uma promessa atirando-se pelas escadas do Bom Jesus de Braga. Marta era uma mulher agradavelmente desinibida, João tinha aquele ar de intelecto, mas era mesmo só o ar, e Pedro era o MacGyver do grupo. Nunca mais me esquece de uma vez, Pedro se ter atirado de um 10.º andar utilizando um saco do Pingo Doce como pára-quedas. Dizia ele que eram os únicos sacos que sendo pagos vinham já com buracos, para deixar passar o ar. Impressionante a visão deste homem.
Ficaram hospedados no Havana Hotel. Era um hotel razoável, com quatro estrelas, uma vista agradável sobre a cidade, casa de banho com banheira e tudo; a água que jorrava das torneiras até nem parecia de má qualidade, portanto podia-se manter os intestinos a funcionar com normalidade. Pousaram as malas, agarraram nos mapas que tinham trazido de Lisboa e fizeram-se à cidade.
Pedro: Epá… o que vocês acham, se fossemos petiscar qualquer coisa? Ninguém disse nada. Olharam uns para os outros, arregalaram os olhos e responderam: - Concordo. E é já. Atreveram-se pelas ruas da cidade na expectativa de encontrarem um restaurante.
Marta: Rapazes! Olhem ali o McDonald’s. Vamos lá?
- Nem penses. Respondeu o João. Achas que me vou meter nisso aqui? Deixa-te mas é de ideias tolas senão daqui a pouco ainda dizes que te apetece umas pataniscas.
- Eu aqui só alinho em comida da região. Atirou o Pedro.
A fome era já tanta que os olhos não aguentaram e deram logo de caras com o Naguib Mahfouz, um restaurante, uma referência gastronómica do Cairo. Aquilo parecia um palácio. Vejam lá bem o que faz a fome.
Pedro: João! Tens terrenos para vender? É que acho que vais ter de te desfazer dessas terras para pagar aqui o jantar.
João: Nem penses. Vou para o mais baratinho. Como sabes, a comida no Egipto é dada a muitas especiarias, portanto não me está a apetecer ingerir uma quantidade de alimentos que depois me façam desconfigurar o sistema intestinal.
Marta: Epá… a malta sabe o que é isso. Há dias em que te conhecemos à distância. Sorriu.
Sentaram-se numa mesa junto a uma janela que dava para um jardim interior fabuloso. Chamaram o empregado, que delicadamente lhes fornecer o menu.
Pedro: Não percebo nada disto. Acho que vou pedir Kebab. Já li que este prato é muito semelhante à nossa comida.
Marta: Onde é que leste isso?
Pedro: Foi numa revista de culinária que estava no supermercado. Aquilo até tem castanhas. Portanto castanhas… Está a ver! Castanhas...Portugal...Portugal...Castanheiros e castanhas Kebab. Certo?
João: Pedro! Trouxeste os comprimidos? É que da última vez que viajámos juntos confundiste uma bomba de gasolina com um chafariz. Lembras-te?
Pedro: Lembro. Mas isso foi porque não estava sinalizado.
Demoraram duas horas a jantar e outras duas para se conformarem com o pagamento. No dia seguinte deslocaram-se à recepção do hotel e pediram informações sobre visitas ao Vale dos Reis, principal necrópole real do Império Novo do antigo Egipto, possui 62 túmulos dos faraós desse período e também os túmulos dos faraós Tutankamon, Ramsés IX, Seti I, Ramsés VI e o de Horemheb. Ainda hoje se continuam a retirar jóias dos túmulos dos filhos de Ramsés II. Até há quem diga que aquilo nasce tudo ali. O Egipto é um dos países mais populosos de África, com cerca de 80 milhões de habitantes, mas estes são os que andam à superfície. Imaginem os que ainda estão enterrados. Fabuloso.
Viram chegar um autocarro com aspecto turístico, pelos menos faltava-lhe algumas partes da chapa, que dava aquele ar de descapotável, propício para se tirarem umas fotografias com grandes angulares. Ao fim de umas horas não se via sinal do Vale dos Reis.
Marta: Será que nos enganámos no autocarro?
Pedro: Admira-te. Estás sempre a fazer isso em Lisboa. Ahahahah… agora de repente lembrei-me daquela vez em que querias apanhar o autocarro para Algès e foste ter ao Barreiro. É parecido.
Marta: Não sejas parvo Pedro. Isso foi porque nesse dia eu tinha ido ao ginecologista e ainda vinha meio desorientada. Sabes como são estas coisas.
João: Epá! Estou a ver ao longe três coisas esquisitas. Parecem Toblerones apontados ao céu. Impressionante esta associação. A capacidade intelectual que João coloca nas suas observações.
Pedro: Mas… mas aquilo são as pirâmides de Gizé!!!
Marta: Mau. Já não estou a perceber nada. Mas não íamos para o Vale de Judeus?
Pedro: Judeus? Vale dos Reis, Marta. Vale dos Reis… cappicci?
Marta: Ah! Então quer dizer que o Vale de Judeus fica na parte oriental e o Vale dos Reis na Ocidental. É isso?
João: Não, minha querida. O Vale de Judeus fica em Alcoentre. Enquanto que no Vale dos Reis, se abrires a porta de um túmulo não te aparece ninguém, no Vale de Judeus se abrires um portão os gajos começam logo a cavar de lá para fora. Mais uma arrancada deste génio que não deixa de nos surpreender.
Chegados às pirâmides de Gizé apareceu logo um homem velho, vestido com umas fitas de linho brancas, que lhe enrolavam o corpinho todo. Estabeleceu-se logo ali uma reunião comercial, acabando por resultar na compra de um mapa desenhado em papel de jornal, com uns caracteres meio estranhos. Dizia-se um conhecedor da área, nomeadamente nas profundezas das pirâmides. João ficou fascinado com aqueles desenhos esquisitos. Agarrou no mapa e passou por uma entrada barrenta. Os outros seguiram-no. Pudera.
João: Vocês já viram bem estes desenhos nas paredes? Foi aqui que tudo nasceu.
Pedro: Como assim? Mas nasceu o quê?
João: Foi aqui que nasceu a construção civil. Já viram bem o que é meter calhau sobre calhau até lá cima?
Marta: Vamos fazer o seguinte. Ligamos as lanternas e separamo-nos, depois daqui a meia hora voltamos a encontrarmo-nos aqui. Assim quando nos reunirmos podemos salientar os aspectos mais relevantes que cada um viu. Depois voltamos a vê-los em conjunto.
Pedro: Concordo. Mas… E se nos perdemos? Como fazemos. Gritamos? E o eco que isto faz?
Marta: Nada disso, Pedro. Se isso acontecer fazemos sinal com a lanterna três vezes.
João: Mas Marta, por favor não tremas.
Ao fim de quinze minutos de se terem separado, João andava perdido num labirinto. Dava voltas e mais voltas, ia ter sempre ao mesmo lugar. Até que meteu a cabeça a funcionar. Deixou a lanterna acesa no fim do corredor, acendeu o isqueiro e dirigiu-se para a outra extremidade. Assim poderia ser visto de dois lados. Mas a vida de um génio não é nada fácil, é como os isqueiros, apagam-se. E de repente João ficou às escuras, nem lanterna, nem isqueiro.
Marta! Pedro! Estou aqui, por favor acudam-me.
Nada. Nem sombra deles (esta da sombra às escuras não é fácil, mas tem de ser…)
Ao tentar encostar-se a uma parede ouviu um barulho. Uma porta abriu-se. João caiu sensivelmente três a quatro metros em direcção ao desconhecido. Levantou-se atirou uma asneira para o ar que se ouviu algumas 100 vezes (chama-se eco... o eco). Reparou num buraco no tecto que deixava passar uma réstia de luz e iluminava de forma deficiente o local onde se encontrava. À sua frente estava um pequeno templo, dourado, com quatro leões de boca aberta. Havia um que já lhe faltava um dente. Isto das cáries não perdoa. João esgueirou-se sorrateiramente até ao templo e viu que lá dentro estava um boneco. Parecia uma Matriochka, aquelas bonecas russas que saem umas dentro das outras. Até parecem iguais, mas não são, porque para saírem umas dentro de outras têm de ser mais pequenas (isto tem de ficar bem claro).
- Afinal as Matriochkas não nasceram na Rússia ou então os russos viveram aqui antes dos egípcios. Disse baixinho.
Aproximou-se do boneco, bateu-lhe com uma das mãos e aquilo soou-lhe a oco. Meteu-se de joelhos e com força arrastou-o para fora do túmulo.
- É um sarcófago! É um sarcófago! E parece estar cheio. Vou abrir isto.
Viu uma pedra grande ao canto da câmara e deu-lhe com ela várias vezes, no sarcófago, claro. Fez-lhe um buraco entre a cor azul e a vermelha (ele sempre foi muito meticuloso). Levantou a tampa e ficou estupefacto. Lá dentro encontrava-se outro sarcófago, mais pequeno. Mais uma pedrada bem dada, desta vez ao meio do boneco. Saltou-lhe logo a tampa (reparem que estamos a falar do boneco), para deixar a descoberto ainda mais um sarcófago, desta vez muito pequeno. Com uma das mãos agarrou-o, virou-o para a luz que vinha do tecto e decidiu abri-lo, uma vez mais, mas desta vez sem a pedra. Abriu a boca de espanto. Lá dentro estava um pedaço de papiro e um palito. João abriu o pedaço de papiro e tentou decifrar aqueles caracteres, recorrendo ao pequeno dicionário que trazia no bolso.
“Este pequeno palito foi usado por Kufu na sua última refeição”. Dizia a inscrição.
João guardou ambos e esperou que alguém aparecesse, para anunciar a sua descoberta ao mundo. O Palito de Kufu.
Até hoje nunca mais se soube desses três amigos, nem do que o destino lhes reservou. Consta-se por aí, que anos mais tarde um arqueólogo encontrou numa das pirâmides os corpos de dois jovens agarrados a duas lanternas. Tudo indica que morreram a fazer sinais de luzes.

Entrevista com o Diabo

Não sei bem o que se passou comigo naquela manhã de Dezembro, só sei que andava eu pelas ruas da Baixa, quando de repente senti uma pancada na cabeça.

Tentei levantar-me, mas não consegui mexer um dedo. Pensei: - Ok! Toni, estás morto! E estava mesmo. Mas porquê? O que realmente aconteceu? Bom, ouvi dizer que quando uma pessoa morre se eleva no espaço, libertando-se do corpo. Foi o que aconteceu, vi-me a subir no ar e foi nesse momento que reparei, que no meu corpo, inerte, estava um semáforo em cima das minhas costas. Pela confusão instalada apercebi-me que tinha sido um autocarro de dois andares, cabriolet, daqueles que levam os turistas às zonas mais engraçadinhas de Lisboa. O impacto foi de tal maneira forte que havia turistas e máquinas fotográficas espalhadas por todos os lados.

Nesta minha viagem inesperada entrei por um túnel. Ainda pensei que... se não ia para o céu, por que é que tinha de ir pelo túnel do Rossio para o inferno.

Aquilo fez-se bem, e rápido, momentos depois estava à entrada de um portão enorme, em ferro, com umas lanças que mais pareciam espetos, numa qualquer casa de frangos assados. Havia uma fila enorme de homens e mulheres, trocavam-se olhares, sorrisos e alguns até choravam. Tirei uma senha vermelha com o n.º 123.456. Pensei para comigo - Parece-me pouca gente! Só mais tarde é que vi um placar que tinha a seguinte legenda: "MORTE POR ACIDENTE - Abertas inscrições para os que morreram entre as 12H45 e as 12H46".

Sentei-me numa cadeira e esperei calmamente a minha vez. Ao fim de duas horas ouvi um berro.
- António de Jesus!!!!
- Sou eu. Respondi ainda mais alto.
- Dirija-se ao gabinete n.º 2.
E lá fui eu. Quando cheguei ao gabinete a porta encontrava-se fechada, bati, voltei a bater e... entrei, pois claro. Apareceu um homem que me mandou sentar.
Eu simulei ficar impávido, mas o sangue fervia-me nas artérias, precipitando-se para os órgãos previsíveis. Quando o homem regressou trazia com ele um tipo meio esquisito que mais parecia o diabo. Parecia não, era mesmo o gajo em pessoa.
Diabo: Você tem aqui um lindo currículo, sim senhor. Receio que não tenha boas novidades para si.
Toni: Mas olhe que esse currículo está adulterado. É de um vizinho meu, que me pediu para eu enviar para umas pizzarias. Veja lá que o gajo nem carta de mota tem.
Diabo: Sim... sim... irrelevante meu caro, irrelevante.
Toni: Eu sempre fui um homem honesto, amigo dos animais. Nunca roubei, nem menti...
Diabo: Ai sim!!! Então e o que é isto aqui? Deixe-me ler melhor... pois... abandonou um local de acidente, fugiu à polícia... bem... por aí... por aí...
Toni: Nada disso. Eu vou contar-lhe como aconteceu. Um condutor que circulava numa cadeira de rodas entrou em contramão num acesso à A1, no sentido Lisboa-Porto. Eu que vinha a conduzir o meu camião, descansadinho, a falar com um amigo meu pelo telemóvel, quando reparei no gajo da cadeira de rodas não consegui evitar o acidente.
O condutor da cadeira de rodas depois de colidir comigo a grande velocidade ainda se pôs em fuga. A GNR quando chegou ao local, depois de eu ter contado o sucedido, ainda confirmou que tinha visto um condutor numa cadeira de rodas a fazer sinais de luzes e a acenar.
Diabo: Hummm... isso parece-me história.
Toni: Juro-lhe. Até lhe digo mais, lembro-me perfeitamente das horas que eram, porque o relógio está parado há 5 anos e os ponteiros não avançam nem um segundo.
Diabo: Bom, Sr. António de Jesus... Epá... este apelido aqui no inferno não me agrada... Quem foi o autor de tal apelido?
Toni: A minha mãe, sr. Diabo.
Diabo: Como é que ela se chama?
Toni: Chamava-se Maria de Fátima.
Diabo: Estamos pior... Vou ter de lhe ler a sentença.
Toni: Espere!! O meu pai é que era um santo. Chamava-se Luís Judas.
Diabo: Ah! Esse apelido soa-me bem. O que é que o seu pai fazia na vida?
Toni: Era carpinteiro.
Diabo: ???? Carpinteiro????
Toni: Sim. Mas era só ajudante. Segurava nos pregos enquanto o outro martelava.
Diabo: Já estou farto de si homem. O que quer fazer aqui em cima?
Toni: Não sei ainda. Aqui ganha-se bem? Ou nem por isso?
Diabo: Paga-se pouco, mas se for ali para a porta do lado, onde andam os anjinhos... não ganha nada. Agora escolha. Onde quer ficar?
Toni: Fico aqui. Qual é a minha pena?
Diabo: Vai ser condenado à morte.
Toni: Outra vez?
Diabo: Já tinha sido antes?
Toni: Não. Mas em pouco tempo é a 2.ª vez que vou morrer. Quando é que a sentença vai ser executada?
Diabo: Hoje.
Toni: Seja, então. Como vai ser?
Diabo: Com Cicuta.
Toni: Está bem. Pelo menos é diferente.
O diabo toca um pequeno sino que tem na secretária, um homem aparece com um copo de água na mão.
Diabo: Tome, beba e mexa bem, que às vezes o veneno fica no fundo.

CROMUS CUNICULUS

Vulgarmente conhecido por “Cromo”. Todos nós já vimos esta peculiar criatura. Mas se alguém ainda não deu por ela, não será difícil encontrá-la por aí. Normalmente este espécime, carnívoro, ocupa os lugares cimeiros na cadeia dos predadores; a excepção é que nunca ataca animais do mesmo sexo. Habita normalmente em lugares afastados dos grandes centros populacionais; no entanto já foram vistos a circular por zonas mais movimentadas. A sua cabeça varia conforme a presa a atacar; normalmente disfarça-se com penteados brilhantes, a que associa cortes irregulares, para assim confundir o alvo pretendido. Reveste-se das mais variadas formas. Esta é uma das suas grandes armas. Já foi visto em fato de treino (normalmente aplica-lhe duas listas verticais brancas, estrategicamente colocadas), meia branca turca e chinelos. O pormenor das meias brancas é muito útil na aproximação da presa, uma vez que lhe permite deslocar-se de uma forma silenciosa. Costuma, em alguns casos colocar duas raquetes de ténis cruzadas para dar um ar desportivo. Quanto aos chinelos, são normalmente em borracha barata, com logótipos estranhos. Os chinelos são úteis no Verão ou quando inicia uma perseguição desenfreada, dado o arejamento constante nos membros anteriores. Mas existem variações desta raça. Uma das variantes consiste na apresentação em T-Shirt, camisa texturada com cores garridas ou até com flores e palmeiras. Uma camuflagem perfeita. Costuma adornar-se de fios grossos e anéis. Apostam nos dourados, emitindo assim um sinal de riqueza como chamariz. Um pormenor importante é que nas mãos existe sempre um dedo que tem uma unha consideravelmente grande, usada para a sua higiene pessoal, nomeadamente os ouvidos. Este animal preocupa-se muito com estes pormenores. As suas sociedades são dominadas por fêmeas, o que não é comum entre os mamíferos normais, e as fêmeas têm níveis de agressividade muito altos, o que de facto interfere na procriação. Não vivem em clãs. Costumam caçar isoladamente e raramente montam emboscadas. Gostam de se fazer notar. A sua linguagem é muito típica. Utilizam palavras cortadas, fáceis. Cativam as fêmeas com frases em forma de galanteio. São pouco inteligentes, o seu cérebro é tacanho, mas têm uma forma muito cativante de andar; fazem-no compassadamente, em movimentos laterais. Há espécimes que na sua idade adulta apostam num sorriso falhado, com alguns espaços negros. É uma táctica comum na arte de assobiar e atrair a presa ao seu ninho. A pelagem é normalmente clara, às vezes preta, é rala e esparsa. A pele superior está frequentemente marcada por tatuagens com inscrições geográficas ou frases sentimentais. Ao redor dos olhos utiliza um conjunto de dois espelhos a que se dá o nome de óculos, o focinho na maioria dos casos é coberto por um vasto aglomerado de pêlos. E basicamente é este o “Cromo”. Um animal sui generis da sociedade contemporânea e que se vai mantendo e preservando nos dias de hoje. A foto aqui presente mostra uma versão mais elaborada deste animal, num cenário de caça grossa.